17/07/2011

Para quem vou dar satisfação?

Cheguei ao abrigo com 8 anos e nunca mais saí. No começo, achava que todo dia seria o último. Meu maior sonho sempre foi ser adotada. Inocente, imaginava que não era porque meus pais não me queriam que outros também não iam querer. Tinha muita vontade de chamar alguém de pai e mãe.
Mas meu processo ficou emperrado: minha família nunca assinou o papel que me liberaria para adoção. Mas, se não me querem, por que não me liberaram? Nem visita nunca recebi.
Lembro como se fosse hoje do dia em que minha mãe me abandonou. Eu tinha 7 anos e minha irmãzinha tinha 2. Vi um monte de malas na sala, mas, na minha cabeça de criança, achei que ela ia ao supermercado. Foi a última vez que a vi.
Mas não posso reclamar da vida no abrigo. Minha primeira cuidadora parecia uma mãe de verdade. Acho que fui pegando um pouquinho da personalidade de cada cuidadora e montei a minha. Dou satisfação como qualquer filho: se vou chegar mais tarde, preciso ligar e avisar. Quando sair daqui, para quem vou dar satisfação?
Saio dia 5 de dezembro. Tenho medo da vida fora do abrigo. Já estou planejando tudo. Comecei a trabalhar em uma loja de shopping e estou combinando de dividir um apartamento com dois amigos de lá.
Foi engraçado quando descobriram que eu morava em um orfanato. Pensaram que é mentira, porque acham que criança de abrigo é rebelde, traficante, drogada. Na escola é a mesma coisa. Tem hora que dá raiva do preconceito.
Quando sair daqui, vou deixar a Isa, minha irmãzinha, que agora está com 12 anos. Mas quero me estabilizar para poder levá-la. Se eu tiver um filho um dia, posso ter a maior dificuldade, mas não vou abrir mão dele. Meu sonho é poder fazer aquele almoço de domingo, com marido e filhos. É uma coisa que eu nunca tive, mas sempre vejo na TV e acho que deve ser tão gostoso...
Mas minha mãe eu não quero ver mais. Se eu fosse procurá-la, seria para mostrar que eu não dependi dela para viver e ainda criei uma filha dela."
Fonte: depoimento publicado no jornal Estadão, de 17/07/2011.

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